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quinta-feira, 16 de maio de 2013

Dois mortos que nunca morrem: Allende e Neruda

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Márquez, Gabriel Garcia. A aventura de Miguel Littin clandestino no Chile [pg.69-74]

As poblaciones, enormes bairros marginais nas maiores cidades do Chile, são ,de certo modo, territórios liberados – como a casbah das cidades árabes -, cujos habitantes curtidos pela pobreza desenvolveram uma assombrosa cultura de labirinto. A polícia e o exército preferem não se arriscar, antes de pensar mais de duas vezes, por aquelas colmeias de pobres onde um elefante pode desaparecer sem deixar rastros, e onde têm de enfrentar formas de resistência originais e inspiradas, que escapam aos métodos convencionais de repressão. Essa condição histórica converteu as poblaciones em polos ativos em definições eleitorais durante os regimes democráticos, e foram sempre uma dor de cabeça para os governos. Para nós, foram decisivas para estabelecer, em termos de depoimento cinematográfico, qual o estado de ânimo popular em relação à ditadura, e até que ponto se conserva viva a memória de Salvador Allende.

(...)

O nome de Salvador Allende é o que mantém o passado, e o culto à sua memória alcança um tamanho mítico nas poblaciones. Estas nos interessavam, acima de tudo, para conhecer as condições em que vivem, o grau de consciência frente à ditadura, suas formas imaginativas de luta. Em todas nos responderam com espontaneidade e franqueza, mas sempre em relação à lembrança de Allende. Muitos depoimentos separados pareciam um só: “Sempre votei nele, nunca em outro”. Isto se explica pelo fato de Allende ter sido tantas vezes candidato ao longo de sua vida, que antes de ser eleito brincava dizendo que seu epitáfio seria: Aqui jaz Salvador Allende, futuro presidente do Chile. Tinha sido candidato quatro vezes até ser eleito, mas antes fora deputado e senador, cargo que continuou conquistando em eleições sucessivas. Além do mais, em sua interminável carreira parlamentar foi candidato pela maioria das províncias pelos quatro cantos do país, da fronteira peruana até a Patagônia, de modo que só não conhecia a fundo cada centímetro quadrado, sua gente, suas culturas diversas, suas amarguras e seus sonhos, como também a população inteira o conheceu em carne e osso. Ao contrário de tantos políticos que só foram vistos nos jornais ou na televisão, ou escutados pelo rádio, Allende fazia política dentro das casas, de casa em casa, em contato direto e cálido com as pessoas, como ele era na realidade: um médico de família. Sua compreensão do ser humano unida ao instinto quase animal do ofício político chegava a suscitar sentimentos contraditórios nada fáceis de serem resolvidos. Sendo já presidente, um homem desfilou na frente dele numa manifestação elevando um cartaz insólito: Este é um governo de merda, mas é o meu governo. Allende se levantou, aplandiu-o e desceu para apertar sua mão.

(...)

Durante seu governo eram vendidos nos mercados populares uns pequenos bustos com sua imagem, e que agora são venerados nas poblaciones com copos com flores e lâmpadas votivas. Sua lembrança se multiplica em todos, nos anciãos que votaram nele quatro vezes, nos que votaram três vezes, nos que o elegeram, nos meninos que só o conhecem pela tradição da memória histórica. Várias mulheres entrevistadas repetiram a mesma frase: “O único presidente que falou sobre os direitos da mulher foi Allende”. Quase nunca dizem seu nome: dizem “O Presidente”. Como se ainda fosse, como se tivesse sido o único, como se estivessem esperando que regresse. Mas o que perdura na memória das poblaciones não é tanto a sua imagem, e sim a grandeza de seu pensamento humanista. “Não nos importa nem a casa nem a comida, e sim que nos devolvam a dignidade”, diziam. E mais concretamente:

- A única coisa que queremos é o que nos tomaram: voz e voto.

Dois mortos vivos: Allende e Neruda

O culto a Allende é mais sentido em Valparaíso, o buliçoso porto onde ele nasceu, cresceu e se formou na vida política. Foi ali, na casa de um sapateiro anarquista, que leu os primeiros livros teóricos e contraiu para sempre a paixão ensimesmada pelo xadrez. Seu avô, Ramón Allende, foi fundador da primeira escola leiga que existiu no Chile, e da primeira Loja Maçônica, na qual o próprio Salvador Allende atingiu o grau supremo de Grande Mestre. Sua primeira atuação memorável foi durante os “doze dias socialistas” do já mítico Marmaduque Grove, cujo irmão casou-se com uma irmã de Allende.

É estranho que a ditadura tenha enterrado Allende em Valparaíso, onde sem dúvida ele gostaria de ser enterrado. Foi levado sem anúncios nem cerimônias na noite do dia 11 de setembro de 1973, num primitivo avião a hélice da Força Aérea por cujas frestas se metiam os ventos gelados do sul, e acompanhado só por sua esposa Hortensia Bussi, e sua irmã Laura. Um antigo membro do serviço de inteligência da Junta Militar, que entrou com os primeiros assaltantes no Palácio de La Moneda, declarou ao jornalista norte-americano Thomas Hauser que tinha visto o cadáver do presidente “com a cabeça aberta e restos de cérebro espalhados pelo chão e pela parede”. Talvez por isso quando a senhora Allende pediu para ver o rosto no ataúde, os militares tenham-se negado a descobrí-lo e só pôde ver um vulto coberto por um lençol. Foi enterrado no cemitério de Santa Inês, no mausoléu familiar de Marmaduque Grove, sem mais oferendas que um ramo de flores depositado por sua esposa, dizendo: “Aqui está enterrado Salvador Allende, presidente do Chile”. Acreditavam que dessa maneira estaria fora do alcance da veneração popular, mas não foi possível. O túmulo é agora um lugar de peregrinações permanentes, e sempre há nele flores depositadas por mãos invisíveis. Tratando de impedir isso, o governo tentou fazer com que as pessoas acreditassem que o cadáver fora levado a outro lugar, mas as flores permanecem frescas no túmulo.

Outro culto que permanece vivo nas novas gerações é o de Pablo Neruda em sua casa marinha da Isla Negra. Esta localidade lendária não é uma ilha nem é negra, embora seu nome a indique, mas sim uma aldeia de pescadores quarenta quilômetros ao sul de Valparaíso pela estrada de San Antonio, com caminhos de terra amarela entre pinheiros gigantescos, e um mar verde e bravio, de grandes ondas. Pablo Neruda teve ali uma casa que é um lugar de peregrinação de namorados do mundo inteiro.

(...)

Mas ainda ficava um vestígio de grande poesia: desde o último terremoto, na Isla Negra continuam sendo sentidos tremores de terra intermitentes a cada dez ou quinze minutos, todos os dias com todas as suas noites. 

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